08 junho 2017

THE BEAUTIFUL AND THE SAINTS


Se bem que as penas destas avezinhas sejam no geral (e no particular) o mais possível diferentes das minhas, contudo, de vez em quando depara-se-nos uma observação que encontra em nós o seu eco e anuência.
Tais coincidências, sempre raras, apesar da natural e cultivada indiferença da opinião do próximo que a cartilha do discreto manda exercitar, não deixam todavia de ser gratas e até tranquilizadoras, por isso que, nas palavras do cínico antigo, não convém uma pessoa permanecer muito tempo onde ninguém se parece com ela; e «un alma necesita respirar almas afines, y quien ama sobre todo la verdad necesita respirar aire de almas veraces» (Ortega y Gasset, El Espectador, I, «Verdad y perspectiva»).
Pois a última destas raridades deflagrou-a uma observação de Francisco José Viegas, por alguma coisa um liberal à moda antiga, amigo ou porta-voz de António Sousa Homem, por sua vez um antigo e um liberal; observação, ainda assim, prudentemente envolvida pelo bom Viegas entre parêntesis no meio do artigo do Correio da Manhã, de 3 de Maio, a saber: «(o betão de Fátima é a prova da imensa capacidade da igreja de hoje para ignorar a beleza)».
E tenho pensado nisso, tanto mais que, ultimamente, como preparação de próxima viagem a Itália, ando lendo sobre a arte italiana.
Desde os tempos do Renascimento, quando a Igreja patrocinava os grandes artistas, até aos tempos desta modernidade ou pós-modernidade, quando a Igreja encomenda à artista Joana Vasconcelos um terço gigântico à laia de obra de arte comemorativa do centenário das aparições (ou visões? Eis a magna questão do momento), a Igreja mudou, e não me parece que para melhor. Parece-me que faltam pecadores na Igreja, quer dizer, na hierarquia. Fazem falta príncipes da Igreja verdadeiramente dignos desse nome; os cardeais e papas de agora serão muito santos, mas bacoreja-me que sem a chama da volúpia do belo, «sempre rubra, ao alto, a arder», num Júlio II ou num Leão X. Os de agora afiguram-se-nos muito boas pessoas, santos decerto, mas apagados para a beleza. E toda a gente perde com isso, até a Igreja: «Não olheis aos vossos pecados, mas à fé da vossa Igreja», já dizia o seu mentor. E como pode haver fé sem a grande arte, deuses imortais! Música, pintura, arquitectura… Se não fosse a Igreja, onde estavam três quartos da Arte Ocidental?! Encomendam a Siza barracões industriais à laia de Igrejas, para não tornar à nutrida artista Joana Vasconcelos, que confunde o tamanho XXXL da sua roupa com o volume das suas putativas esculturas. Reserve-se urgentemente uma cota no colégio de cardeais a pecadores de boas famílias por amor da arte. – S. O. S., seja, mas também S. O. A.
O que é triste é que os experimentalistas, em vez dos artistas, tomaram conta dos departamentos culturais da única entidade que continua a gastar dinheiro com música e escultura, o Estado. Fazem falta os grandes mecenas privados. A Igreja, entregue a santos, desamparou a grande arte. Por desventura, os santos, ou são por via de regra, senão exigência de ofício, ignorantes, ou estão mais preocupados com a beatitude; e os outros, os aristocratas magnificentes, são uma espécie extinta. Os ricos actuais mostram-se ordinariamente incultos e até crassos, mingua-lhes a criação e o refinamento apurados por dez gerações ininterruptas de gente opulenta, entendida e requintada. É pena – porque para a arte é melhor ser belo do que santo, ainda que seja melhor ser santo do que feio.  
Hoje, porém, o pior de tudo ainda é a subserviência perante o «Artista» (com maiúscula). Hoje, qualquer enzona se encampa por obra de arte porque a mera experiência substituiu a obra.
Mas não faltam os Mozarts potenciais. O que falta é um arcebispo de Salzburgo que trate o artista como um criado; genial embora, mas criado.

Porque uma vez e sempre se confirma que a «arte nasce de constrangimento, vive de luta, morre de liberdade»: excelentemente André Gide. 

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